sexta-feira, 18 de setembro de 2009

o dia 9861

[caption id="attachment_23" align="aligncenter" width="600" caption="No meu 9861º dia"]No meu 9861º dia[/caption]

O despertador tocava sempre no mesmo horário da manhã. “Evidente que a palavra ‘eu’  não passa de um pseudônimo usado pelos medíocres”, foi o primeiro pensamento do dia de Homônimo, antes saber que se confrontaria com seu lado negativo mais tarde. Gostaria de passar mais tempo na cama, mas se permanecesse ali as coisas sairiam de seu planejamento.

Ao escovar os dentes, questionava-se em aceitar ou não seu nome, já que seria o mesmo independentemente de ser chamado de qualquer coisa. Talvez esse fosse o maior enigma de sua vida e toda sabedoria que acumulara ao longo dos anos, em que testou ser chamado de qualquer coisa classificada como animal, vegetal ou mineral e não sentiu diferença.

Creditava nomes como rótulos que passam a vida inteira no cotidiano de todos. As pessoas se acostumavam, simplesmente. Alguns ainda acumulavam mais de um em sua trajetória, quando atendiam por apelidos. Normalmente, esses eram os ridículos das biografias. Nomes seriam enterrados com as pessoas e juntamente esquecidos, mas jamais chegariam a atingir as particularidades de um indivíduo, por mais insignificante que ele fosse.

“Se querem mesmo chamar pessoas de algo, que cada nome fosse exclusivo, como uma patente”, pensou, ao se arrumar para o trabalho em seu 9861º dia de nascimento, contando os bissextos. “Pessoas não ultrapassam gerações, morrem”, pensava enquanto se vestia.

Era o mesmo dia de sempre, disfarçado de outra data. “Os atos, nem os irrefletidos, mudam alguma coisa. Por isso não quero filhos”, disse, ao checar a aparência no espelho. Lavar as mãos era algo inerente dele, assim como não se apaixonar, nem fazer amizades.

Se pudesse, Homônimo não dividiria sua presença com ninguém. Só se mantinha no emprego pela necessidade de se sustentar, já que começou a trabalhar cedo justamente para sair de casa e sumir do mapa. A própria sombra era sua arqui-inimiga, se pudesse contar quantas vezes havia tentado se separar dela, iria se perder nas contas. Por isso, preferia as noites, quando tinha a nítida sensação de estar sem ninguém ao lado.

Por incrível que pareça, gostava da vida e de sua rotina. Desde que estivesse só. Adorava odiar seus colegas de trabalho com todas as forças. Uma de suas diversões era ridicularizar em pensamento a postura, a vestimenta e a maneira de andar dos companheiros de trólebus, no entanto, se algo saísse diferente do previsto era desesperador para ele.

Se o número exato de passageiros de todos os dias não subisse no trólebus, se desse um passo a mais ou a menos no caminho para o trabalho ou de volta para casa, se algum colega de trabalho faltasse ou se os seus horários não coincidissem com a mesma pontualidade, estava perdido. Um dia, no caminho para o trabalho, sentiu que era perseguido e olhou o relógio.

Estava atrasado um segundo e correu desesperadamente. Atrás dele, um homem de capa preta e olhos vermelhos empenhava uma faca e tentava furá-lo. “São os mancebos de meu avô?”, perguntou ao homem, que continuava a tentar golpeá-lo. “Diga a eles que nunca mais voltei lá porque não gosto de outras presenças”, explica, enquanto se desvencilha da faca.

Subitamente, o homem para e pede que Homônimo diga a senha para que vá embora. “Um, dois, três mudar”, responde. O homem assente, pede desculpas e derrete, de cabeça baixa. Precisava correr para não chegar atrasado ao trabalho, mas estava sem fôlego e parou para descansar, embaixo de um salgueiro chorão próximo a um riacho de sangue escondido por um matagal.

Andou, até escutar um choro de criança e seguir a voz. Começa a observar, escondido: um menino, com as feições idênticas às que ele teve na infância, mergulha naquele sangue como se quisesse se limpar de algo. Talvez da morte. Quando percebe que Homônimo o vê, quase em estado de choque, sussurra palavras selvagens e tenta correr, mas Homônimo o segura, quer saber a verdade. “Você é o mesmo menino que conviveu comigo na infância? O que aconteceu depois de agosto?”, perguntou.

Queria saber se o menino era o gêmeo que morreu de forma trágica e prematura, ou se quem teria morrido, na verdade, teria sido ele. “Por que essa morte ainda está tão presente em minha vida, por que, ou por quem, não fui com você?”, questionou, ao apertar a criança, que grita, também assustada, e foge, ao se dissolver feito pó.

Homônimo quer ir embora dali, chegar ao trabalho, tomar tranquilizante, qualquer coisa que o faça se distrair para continuar vivendo como se nada tivesse acontecido antes. “Dormir é a melhor forma da fuga para os covardes, estou com sono”, repetia, para não pensar em outra coisa.

Andava em círculos, desesperado, sem querer encontrar ninguém que o ajudasse. Queria apenas voltar para odiar as pessoas, não era pedir muito.
Debaixo de uma macieira, uma moça, muito parecida com Homônimo, descansa de cabeça para baixo. Ela tem a mesma face dele, mastiga uma maçã e pede para que não revele a ninguém seu esconderijo, muito menos às suas irmãs gêmeas, que a expulsaram da aldeia.

A jovem questiona se Homônimo também seria univitelino dela, mas ele responde que não sabe, ao que tudo indica só teve um irmão que morreu no parto, e pergunta qual o caminho para a saída. “Quero ir trabalhar”, justifica. Ela o leva e, quando chega ao lugar indicado, desaparece.

Homônimo percebe que ela mentiu, aquela não é a saída. Vê adiante uma cachoeira e um campo verde. Pessoas exatamente iguais a ele caminham com tecidos leves, de todas as cores, enroladas no corpo. Eram diferentes pela faixa etária e cortes, cores e tipos de cabelo. “Iguais que convivem sem se importar com a individualidade”, pensou, enojado.

As mulheres reparam a presença do novato e pedem aos homens que não permitam que ele fuja. Crianças brincam livremente por ali, inclusive o menino encontrado no riacho de sangue, há vários iguais a ele. Os homens se aproximam de Homônimo e calmamente dizem que ele não poderá ir embora até conhecer o lado mau que está à sua espera. Então, Homônimo reclama que está atrasado para o trabalho e que acumular serviço acarretaria chegar em casa mais tarde, tirar os sapatos, vestir o chinelo, trazer o sapato para dentro, deixar a pasta no chão da área de serviço, lavar as mãos, fechar a porta e o trinco, sacudir as roupas da rua na janela, tirar as meias, lavá-las e deixá-las na pia, lavar as mãos, pegar a toalha, tomar banho, lavar a cueca no chuveiro, enxugar-se, vestir a roupa de casa, estender a cueca, a meia e colocar a toalha no varal,  jantar, lavar a louça, esperar aparecer alguma coisa boa na televisão para finalmente desligar o aparelho e tentar dormir.

Irredutíveis, os homens não dão outra opção a Homônimo, que é conduzido até o seu lado negativo com muita má vontade. Idêntico a ele, outro homem está de costas e, quando se vira, impaciente, Homônimo boceja. O homem, que insiste em ser mau, não amedronta Homônimo, que só pensa em ir embora dali para adiantar o trabalho. Ele realmente se apresenta como Lado Negativo e mostra a um Homônimo incrédulo e irônico pessoas conhecidas dele, aprisionadas em um espelho redondo.

Indiferente, Homônimo diz ao lado negativo que pode deixar todo mundo ali, se quiser, e se pensa que o atraiu até ali com o intuito de fazer chantagem com aquelas pessoas, faria um favor se as aprisionasse no espelho. E que, de qualquer forma, precisa ir embora antes de anoitecer, pois ainda pretende estudar a sanidade dos anjos, já que possivelmente perdeu a hora de ir ao trabalho, mas pretende chegar pontualmente na repartição no dia seguinte.

Então, o homem desiste e avisa que uma nave o espera fora dali. Homônimo responde que liberá-lo é mais que a obrigação dele, e que foi um desprazer conhecê-lo. Sim, Homônimo resolve ir trabalhar e, quando chega, muito atrasado, está extremamente irritado e como sempre não cumprimenta ninguém.

Decide não almoçar para adiantar o serviço, que fiocu parado durante sua ausência. Em casa, pragueja os imprevistos e reclama. Antes de dormir, diante do espelho, sorri para si mesmo e diz boa noite ao irmão gêmeo, como faz todas as noites. “Veja bem, sou inofensivo. Não gosto das pessoas, só de você”, explica, ao terminar de contar como foi o seu dia. “Só de você”.

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PERGUNTA DO AMIGO EUZER - QUEM ESTÁ SEGURANDO O BOLO? VOCÊ CONSEGUE RESPONDER?


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Playlist da semana:



1) Arcanjo – Danni Carlos ("… E quando a noite vinha, ela temia poder cair a qualquer momento. Porque a verdade aparece Você vai ver. A verdade não esquece até dissolver uma lágrima quente, quem te fez chorar…Meu arcanjo arda armado, pra me defender, e com seu corpo fechado põe pra correr, toda sombra que cisme em pousar do meu lado”…). Se você não escutou não sabe o que est[á perdendo.
2) Second chance – Shinedown
3) Não me leve a mal – Wanessa Camargo
4) Desconstruindo Amélia – Pitty
5) Completo – Ivete Sangalo (fiquei com vergonha, depois de ler a crítica do blog Esquina da Música,  que criticou a letra fraquinha.  O céu e o mar, a lua e a estrela o branco e o preto, tudo se completa de algum jeito. Homem, mulher, a  faca e o queijo, o incerto e o perfeito, tudo se completa de algum jeito…). Eu achava linda, agora reconheço que é questionável.

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Lendo: Lembra de Mim? – SOPHIE KINSELLA (Record), depois crítica no Resenhando. Depois da Marian Keyes, na minha opinião, ela é a melhor autora internacional de literatura feminina. O drama de Lexi Smart lembra De Repente 30, com Jeniffer Garner e Marc Rufallo. Adoro!

Terminei de ler, no ônibus, Na Sala Com Danuza (Siciliano), de DANUZA LEÃO, um livro puído que consegui por meio de um projeto chamado Adote Um Livro. Há os livros novos, que não saem de casa porque não suporto livro velho, ou maltratado, e os que estão assim, que me acompanham nos ônibus para eu me desfazer logo. Como sou um parente desnaturado, logo já dei destino certo à obra: vai para minha irmã que, como eu, sempre teve vontade de ler, mas nunca comprou

No final, algumas conclusões: a autora deve ser insuportável, mas não por ser chata, mas por ter, de acordo com as linhas, um temperamento muito diferente do meu. Blasé demais. Não tolero. Mas se você pensar que não gostei, está enganado. Apenas esperava mais. Sensação de tempo perdido. Da mesma autora, Quase Tudo (Companhia das Letras), sua autobiografia com uma visão bem privilegiada da história recente, é um pouco melhor. Preciso urgentemente de um outro livro velho, em que eu não precise de cuidado para virar a página, para me acompanhar. Confesso, esses me dão muita agonia.

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Sexta que vem, uma cena do roteiro que escrevi para a Encenação 2010, para quem não sabe  o maior espetáculo em areia de praia do mundo. O roteiro, chamado Coração Americano (eu e minha mania de enfiar “coração” em tudo, já me disseram e eu reconheço), foi um dos cinco finalistas. Ou seja, eu seria o autor mais jovem (no planeta Terra) a escrever um espetáculo desse porte. Então é isso. Até sexta que vem. Ah, e como diz o institucional do Wordpress, código é poesia! Cuide-se muito!

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