quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Mrs. Dalloway



 Helder Miranda

Quando percebe formigas em casa, ela enche o pires de açúcar para atraí-las e as despeja em algum jardim a céu aberto, respeitando a própria conduta ética de não matar nenhum ser vivo. Precisa aprender pelo menos uma coisa, para que cada dia não passe em branco, e tem as feições de quem amou demais. Mas sorriu, desacreditada, quando disse que ela me lembrava a Mrs. Dalloway.

Não a do romance homônimo de Virgínia Wolf, mas a de outro livro, As Horas (The Hours, Cia. das Letras) de  Michael Cunningham. Ambas as obras, assim como o dia que precisa ser preenchido com um aprendizado, se passam em uma única data. Clarissa Dalloway prepara uma recepção em sua casa, na Inglaterra do período pós-Primeira Guerra Mundial. Clarissa Vaughn, carinhosamente apelidada de Mrs. Dalloway pelo amigo soropositivo em fase terminal, faz um jantar em homenagem a ele. Como tudo está interligado, antes de definir o título de seu livro como Mrs. Dalloway, Virginia Woolf cogitou intitulá-lo como The Hours.

Até conhecer a Mrs. Dalloway da vida real, a personagem tinha a feição de Meryl Streep, que interpretou no cinema uma das três mulheres que, em períodos diferentes, vivenciaram o livro de Wolf. Agora, tem o rosto dela, e um tom de voz aveludado e preguiçoso, facilmente definido como doce de se ouvir e triste quando se é relembrado. Diante do computador, ela passa parte de seu dia. Sabe que o reencontro consigo mesma depende de alguém que vive em suas lembranças e espera rever.

Outra mulher atualiza a todo o momento a sua caixa postal, em busca de sinais do namorado, afirmando que seu sumiço só se justificaria se ele estivesse morto. Enquanto se prepara para o reencontro com o ex para a devolução de pertences, outra pensa que os óculos escuros são a melhor opção para esconder os olhos marejados e conjugar, sozinha, o verbo acenar. O reencontro pode vir de diversas formas. Há aquelas que, após um rompimento, desabrocham na literatura e ganham leitores na internet, dando a si mesmas uma segunda oportunidade para se perceberem.

No final da noite, após uma jornada dupla, de todos os meus reencontros, os que mais ficam na memória estão ligados à abertura do trinco da porta e os imprevisíveis estados de humor de quem os atende. De sorriso no rosto, ou de cara fechada, ela abre a porta. Sempre está linda e, embora não admita em várias ocasiões, espera por mim.

*Editor do site cultural www.resenhando.com. É jornalista, escritor e roteirista. Twitter: @heldermm.

Um comentário:

Joicinha disse...

Parabéns pelo blogger!!!
Você escreve muito bem, sempre que possível passarei aqui para ler seus contos!

bjs

Joicinha