sábado, 10 de julho de 2010

episódio 3 – Melina deixa para lá



Enquanto tento inserir créditos em meu celular, via torpedo, Tizuka e Tomie conversarem sobre a vida. Todos diante do mar e da escultura vermelha feita por Tomie, que já presenciou vários momentos afetivos. Tizuka faz uma documentário, e penso que as conversas não são espontâneas diante de uma câmera ligada, mas talvez eu esteja enganado.

Tomie, artista plástica, fala sobre a sua chegada ao Porto em 1946. "Senti um cheiro e um gosto de amarelo no ar", contou Tomie à Tizuka. E fiquei intrigado de como seria esse cheiro, já que esse gosto eu tenho para mim que é azedinho como as ameixas amarelas que minha mãe comprava na feira e vinham em um saco plástico rosa.

Ela alertava que era bom comer geladinhas, mas eu não aguentava, e mordia com gosto a primeira, que tinha a polpa alaranjada, ainda sem lavar. Voltei ao momento da entrevista e constatei que ali, perto ou longe de mim, estava uma mulher que realizara sonhos.

***

Melina pinta os olhos. E se olha diante do espelho – talvez não se reconheça, se for se comparar agora a quem ela imaginaria que se tornaria quando adulta. Mas Melina deixa para lá e sobrevive. Naquela cantina, em que eu comparava minha blusa cor de rosa e listrada à toalha da mesa, quase o mesmo tecido, ela chorava. Mas decidira que não responderia nada.

Disse que ele foi o único, de verdade, que havia partido o seu coração. E que a havia abandonado no olho do furacão, quando estava transtornada pelo ciúme que sentia dele, a quilômetros de distância. E agora, ele queria voltar, quando sua vida estava determinada, para ir embora de novo e, desta vez, para sempre. Melina não gostava de imaginá-lo apaixonado por outras mulheres e, ao mesmo tempo, tentava loucamente se dedicar ao seu marido. Ele era a sua segunda chance.

No dia seguinte, Melina me chamou para a sala do café e disse, sem temer ser contraditória, que gostaria que as coisas fossem diferentes. Que não conseguiu dormir a noite toda, e ficou aliviada quando o marido inventou uma partida de sinuca para dormir com alguma amante e voltou de madrugada, quando fingiu estar dormindo. Questionei se ela estava disposta a mudar de ideia para encontrar “ele”, e Melina, mais uma vez, deixou para lá. Outras pessoas chegaram, para o café.

***
Até eu dizer a Camilo que não estava interessado, demorou alguns dias. Mas, para isso, antes, tentei uma maneira sutil. “Se interessar, eu ligo para você”... mas surgiram outros e-mails. Muitos até. De investimentos imobiliários que chegavam a R$ 200 mil.

“Sr. Helder, bom dia!
Como conversamos, estou enviando uma sugestão de fluxo para o período de obras, que podem ser modificados mas respeitando os 30% que a incorporadora exige.
Importante é que neste período não temos juros mas apenas correção monetária o INCC [...]

Atenciosamente,
Camilo Ribas
Consultor de Negócios e Investimentos Imobiliários Em todo Brasil”
.

Eu sempre dizia que discutiria em casa e, depois, daria uma resposta. Fiz isso por e-mail. “No momento, não temos condições. Obrigado, Helder”. O problema é que ele ligava no meio do expediente, mandava e-mails que eu sempre respondia que avaliaria coisa que me irrita profundamente, até o dia em que, no fechamento da edição, eu disse: “Não estou interessado”. Seguiu-se, então, um silêncio do outro lado da linha, ele agradeceu e desligou. Também deve ter ficado desapontado.

***
Enquanto coloca os filhos para dormir, após pega-los na casa de sua mãe, Camilo, ao que tudo indica, teve um dia ruim. Sonhava em cantar e, desde cedo, acreditava que tinha talento para a ópera. Como sua voz ia longe, fez a mãe passar vergonha no supermercado, cantando “Italiaaaaaaaaaaana... aaaa!”.

Mas Camilo cresceu, engravidou uma moça que o abandonou quando os gêmeos ainda eram pequenos, se tornou corretor de imóveis e não gosta de ópera. Na própria infância, deixou a ópera de lado. Vivia no mundo das brincadeiras, e nos apelidos grotescos e maldosos que só as crianças, às vezes muito crueis, lhe davam na escola... E hoje, com pouco menos de 30, é fumante, nunca viveu um grande amor, não vendeu um apartamento e cobre os filhos para, novamente, acordar para outro dia. Ele também deixou os sonhos para o dia seguinte. E deixou para lá.
***

Quando cheguei em casa, um caos estava estabelecido. O varal, que precisava ser trocado há certo tempo, quase havia caído na cabeça de Eduarda, que estava meio brava comigo por eu ter adiado tanto tempo para trocar os fios. A resistência do chuveiro também precisava ser trocada, caso contrário tomaríamos banho frio. E eu ainda precisava lavar o box, minha tarefa dominical que eu havia resolvido adiar no meio da semana. Definitivamente, isso também não era o meu sonho de infância.

Um comentário:

Manuela disse...

Helder,parabéns!!!
Eu amo seu trabalho...toda sexta estarei aqui!!bjssss