quinta-feira, 10 de junho de 2010

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Klaus sabia que, se tivesse se suicidado momentos depois de ter chegado em casa após ter passado a tarde com Alícia, evitaria a dor crescente e avassaladora que sentia. Sabia que se matar com remédios, buscando uma morte mais suave, era um ato extremamente feminino. Homens de verdade procuravam mortes trágicas, cortando-se com algum instrumento, utilizando armas de fogo ou atirando-se de prédios, mas assim nunca teria coragem. “Ela não entendeu nada, nada”.

De que adiantava dizer frases que soavam como ótimas sacadas, encantar com seu brilhantismo, espontaneidade, se ela não o voltaria a ver? “Meu bem, você me faz suar”, disse Alícia, nua, estirada na cama, em seu último encontro. Tinha certeza de que, se não fosse tão egocêntrico a ponto de não saber lidar com rejeição, não estaria deprimido. “Ela me enganou”. Sabia que a depressão estava para os narcisistas, da mesma forma que a homossexualidade estava para pais ausentes, mães dominadoras e auto-estima baixa.

E agora, no final da tarde, corria em sentido contrário a pessoas que andavam em grupo em uma das avenidas mais movimentadas de São Paulo, temendo mais um atentado. Seu rosto respingava suor. Para alguns, era um despropósito alguém tão belo e tão triste, supostamente que teria o mundo a seus pés, fazer cara de assustado e gestos estereotipados ao se desvencilhar da massa humana. Alto e vestido com sobretudo azul-marinho-quase-preto, perdido para sempre.

Na verdade, não estava tão assustado assim: queria estar. Para chamar atenção. E, talvez, até preferisse que um dos terroristas o escolhesse para atirar em seus miolos e acabar com aquela dor. Sentiu-se extremamente só quando sentou no chão, naquela tarde de frio e sol abundante, enquanto esperava o ônibus que o conduziria até a vernissage. O celular tocou, achou que era ela, mas se decepcionou ao identificar o número da irmã. “Klaus, preciso falar com você”. “Agora não, Maya”, desligou, irritado, sem querer ouvir mais nada.

* * *

“Por quem ele me toma?”, questionou enquanto passava blush. Alícia era assim: gostava de se avaliar antes de sair, mas dificilmente aprovava-se diante do espelho. Estava pronta para dizer verdades, mas sabia que, quando o revisse, ficaria paralisada. Sempre ela. O que esperar de um homem que tomou sua personalidade por um bando de sacanagens que escrevera em um blog fake, antes de conhecê-lo?

Gostava de sentir-se desejada e escrevia com realidade, mas não passava de sublimação: não fazia sexo, então escrevia relatos que despertavam desejos. Como descrever a ânsia de vômito que sentia em pensar em sexo oral se nunca o fizera? Memória seletiva de livros, vídeos eróticos. Ele não entendera isso. Quando passou o link para que Klaus lesse o blog misterioso, queria ser admirada pelos relatos bem escritos, que ele sentisse ciúmes, mas o que sucedeu a partir daí foi uma série de desentendimentos, em que assumira a culpa. Ele considerara o blog um lixo e ela, uma puta. Sentença: não vê-lo mais. Perdeu o chão.

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“Se não mostrei antes, foi por vergonha, não mentira”. Alícia achou que seria para sempre e, sim, era amor antes de conhecê-lo. Entenda: ele mentira quando dissera que nunca a machucaria, olhos nos olhos, ela entregou mais que o coração. Se não a queria de verdade, por que começara, depois de tantos alertas? Só ela enxergou lirismo, foi tola, leviana e burra. E concluiu que o blog não passara de desculpa para que Klaus se livrasse dela da maneira mais covarde possível: fazendo-a sentir-se culpada em perder o homem de sua vida.

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Azar ter nascido filha caçula quando o irmão mais velho era leucopênico, e detinha todas as atenções para si. Maya recriminava Klaus por ele nunca ter aspirado uma carreira de cocaína, ter tomado, no máximo, dois porres na vida, ter fala mansa e gestos contidos. Pelo fato de ela ser justamente o contrário de tudo isto, ele a ignorava, como todos.

Sendo sincera, preferia ter leucopenia a hiperidrose. Até nisso, considerava-se desfavorecida em relação ao irmão. Enquanto ela tinha aquela “doença humilhante” –devido a qual estava cansada de justificar que a pouca roupa que usava não significava que era vulgar, mas para evitar que suasse ainda mais– ele chamava atenção pela fragilidade. Estava cansada. A doença, em Maya, produzia suor excessivo nas axilas, pés, mãos, barriga, costas e até rosto. E, quando ficava nervosa, tendo em vista que ela não era o tipo de garota das mais calmas, o suor aumentava, principalmente nas mãos, deixando-a ainda mais sem-graça.

Sabia do desprezo de Klaus por tudo que não fosse conservador: olhava com desprezo os góticos, principalmente aqueles que andavam com sobretudo fora de época, ainda mais em cidades praianas. Ridicularizava grupos voltados ao público infantil, em que as vocalistas pareciam mais atrizes de filme pornô, com roupas, cores de cabelo e coreografias que as assemelhavam a prostitutas. Achava engraçadíssimo quando bancavam as “santas” na hora de dar entrevistas, “com essa cara que não engana ninguém”. Bobagens que faziam Klaus se sentir o rei do senso de humor, que poderiam torná-lo brilhante diante de um grupo mas que, para Maya, não o tornava menos idiota

Agora, prostrada diante da recepção do prédio logo após ser demitida – por fazer poemas em vez de trabalhar, segundo palavras de seu chefe, enquanto ela justificava que não sabia disfarçar, “ninguém trabalha durante todo o expediente, desculpa”–, acabara de guardar o celular, após o irmão desligar o telefone enquanto falava. Sabia exatamente o que fazer. E iria gritar para todos o que sentia.

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Falta de sorte ter contraído uma doença em que o controle estava justamente na boa alimentação, quando tinha paladar tão exigente. Sentia ânsia de vômito em beber sucos saudáveis de sabores exóticos, como o de clorofila, ou comer legumes e verduras. Já sentado no ônibus, atrasado mais de trinta minutos por conta do engarrafamento que o terrorismo ocasionou nas ruas, Klaus pensava na vida e concluiu: ela é triste, não as pessoas. “Elas apenas obedecem às regras”. Sentiu pena de Maya e resolveu reconsiderar, mas tinha o pressentimento de que ela não o atenderia mais.

* * *

“Você será usada por mim”, disse Klaus, em tom de brincadeira. “O pior é que sei disso”, retribuiu, simpática, mas melancólica. Imaginava o perigo que ele representava para a normalidade de sua vida, mas pagou pra ver. Não era a inocente que queria provar a si mesma, afinal, não fora obrigada a nada. “É claro que não farei isso”, disse ele, apaziguador, antes de desligar o telefone e deixá-la desconcertada.

Diante do espelho, Alícia viu sua imagem, pronta. Estava linda, desejável aos olhos de muitos, menos para Klaus, que agora a desprezava. Seria humilhante aparecer na vernissage, se sequer fora convidada por ele. Soube da exposição por vasculhar a página pessoal de Klaus em um site de relacionamentos. Desde então, não dormiu, procurou por uma blusa branca especialmente para a ocasião que, quando comprou, ficou perfeita. Agora, a deixava abatida, embora não menos interessante.

Não era dissimulada a ponto de olhar para Klaus como se nada tivesse acontecido e, o pior, como suportaria a dor se ele simplesmente a cumprimentasse como uma admiradora de seu trabalho? E se ele sequer olhasse para ela? “Se eu for, quem sabe ele fique com pena de mim e me foda novamente?, pensou, revoltada consigo mesma, enquanto arrancava os brincos, ríspida. Agüentaria vê-lo ao lado da esposa, inocente de tudo e complementando a imagem de casal perfeito pintada por ele? Não, entre a esposa e Alícia, ele fora claro em dizer que não hesitaria pela esposa, então, se não a amava pelo que ele representava a ela, seria lembrada por sua ética.

Enquanto sua vontade era quebrar o espelho com socos, começou a remover calmamente a maquiagem. Alternativa um: ele não queria que ela fosse à vernissage, por isto não a convidou, sequer se importou com sua ausência ou, pior, não reparou sua falta ali. Queria gritar, mas o que fez foi deixar que a lágrima grossa borrasse a maquiagem –ainda não limpa no lado direito do rosto– e sujasse a blusa branca. Alternativa dois: ele ficara surpreso por ela não ter ido, mas não daria o braço a torcer. Segundo palavras dele, Alícia era complicada demais e não teria espaço em sua vida. Desabotoou a blusa, quando pretendia rasgá-la. Em um berro, despenteou com mãos trêmulas os cabelos pretos. Livrou-se de cada botão, um a um. Alternativa três: tudo ficaria em pratos limpos, ou ele nunca a amara, ou correria atrás dela.

Daria um braço para estar no vernissage. Ao menos isso, será que ele não percebeu? Mas não iria, por ele, pela esposa e, principalmente, pelo que restava de sua dignidade. Atirou-se na cama, apenas de combinação branca e chorou até a dor parecer mais suportável. Ligou a televisão e viu, no noticiário, que uma jovem estava atropelando quem encontrasse pela frente, nas ruas de São Paulo. “Preciso encontra-la”, levantou-se animada como se fosse a uma festa, escolheu seu melhor vestido –aquele cor-de-rosa que insinuava que seu corpo era lindo– e retocou a maquiagem, colocou a bota preta de cano mais alto e salto mais fino, porque ninguém chora cachorro manco. Precisava de uma morte bem masculina, trágica, sangrenta, para fazer jus ao que sentia

* * *

Embora atrasado, Klaus preferiu passar em casa. “Ainda bem que está vazia”, pensou, desvencilhando-se das roupas. Provavelmente a esposa receberia os convidados e a imprensa em sua primeira exposição de quadros, justificando sua ausência e pedindo desculpas pelo atraso, como a mulher exemplar que era. Diante do espelho, pegou o aparelho de barbear, um gesto estranho para quem estava com rosto liso, sem vestígios de barba.

E considerou que sua beleza o prejudicava como artista, tornando-o desacreditado. Se fosse feio e intelectualizado, as críticas aos seus quadros seriam mais favoráveis. Além disso, sua aparência fazia com que pessoas se aproximassem dele com o intuito de fazer sexo, como se ele não tivesse sentimentos. A aproximação de Alícia fora assim. E Klaus identificou nela algo diferente do que era. Algo melhor, mais equilibrado. Podia jurar que tinha planos para os dois, mas uma mulher complicada como Alícia seria capaz de destruir tudo em sua volta e, no momento que estava, envolver-se com ela representava risco, e ele precisava de estabilidade.

Nu, diante do espelho, passou o aparelho de barbear no coro cabeludo e, pacientemente, retirou madeixa por madeixa, até ficar careca. Não teve paciência de retirar da pia os cabelos castanhos finos e, com uma fúria sem propósito, raspou toda a sobrancelha. Precisava de um banho frio e nunca saberia exatamente quanto tempo ficou debaixo d`’água, chorando, em posição de feto. Depois de se enxugar, voltou a se confrontar com sua imagem. Estava horrível. E pronto para ir ao vernissage.

* * *

Alícia pisava firme na rua deserta à procura da jovem assassina e seu carro desgovernado. Guiada pelo rádio portátil, que escutava por meio do fone de ouvido, sabia que estava próxima dela. A última informação era de 30 mortos e 43 feridos, sendo 17 policiais. A polícia, com o intuito de conter o carro, provocara ainda mais caos na cidade e Maya, não se sabe pelo fato de estar furiosa ou se por realmente ser uma boa motorista, escapava de todas as armadilhas das autoridades em capturá-la. Agora, estava sendo monitorada por um helicóptero.

Consciente de que correria o risco de ser estuprada, Alicia se escondeu em uma coluna de um prédio abandonado para que a polícia não a obrigasse a voltar para casa, a exemplo das poucas pessoas da redondeza que havia visto e, para que a fumaça não a denunciasse, preferiu renunciar a vontade de fumar o último cigarro. Linda, até nos momentos em que sua personalidade alcançava o ápice de loucura extremada, assim era Alicia, apaixonada até as últimas conseqüências.

Lembrou-se de como Klaus parecia sincero e como era diferente dos outros homens. Nunca confiou neles, e não soube o motivo de querer que, com ele, fosse diferente. O problema é que, enquanto Klaus queria uma trepada, Alícia procurava, pela primeira vez, uma história em comum. O amor que nunca encontrou em casa. Ou, se ele chegou a ser sincero, concluiu que, em determinado momento, conseguiu estragar tudo, tal qual com as coisas boas, os presentes bons que ganhava na infância como as bonecas que queimava os olhos, as roupas que manchava de propósito. Tudo para chamar atenção, levar uns gritos mas, nem para isto era boa o suficiente. Incompetente também com ele, a ponto de, em vez de amá-la, ele agora ser indiferente a ela.

Lembrou-se do escândalo que fez na porta de uma sorveteria, quando seguia o amado e viu que ele se encontrava com uma adolescente, por sinal, bem vulgar. E o quanto ficara sem graça em ser apresentada, diante de um Klaus polido e envergonhado, como uma amiga à irmã dele. Da vez que furou os pneus do carro dele com faca. Do beijo que deu, antes dele deixá-la na porta do metrô para buscar a esposa na porta de um curso que ela fazia, sendo que havia prometido levá-la em casa.

De repente, escutou gritos dos policiais diante de um carro que cantava pneu. “É ela”, pensou, como se referisse a uma divindade antes de correr, em direção ao automóvel. O que aconteceu depois, visto, em câmera lenta, foi a expressão de susto que Maya, suando às bicas, fez ao passar por cima de Alicia, antes de ser atingida por uma bala na cabeça. Alícia surgiu correndo, fúnebre e branca como uma figura de animê, e lançou um olhar de súplica para Maya, algo que parecia dizer “mata-me sem piedade”.

Em um décimo de segundo, foi surpreendida pela ironia de reconhecer a irmã de Klaus pilotando o veículo, lavado de sangue e com vísceras espalhadas pelos pneus. Morreu, com as pupilas dilatadas de quem não tinha mais lágrimas e corpo desfigurado. Por que tão linda, e tão triste? Maya estava com uma expressão engraçada de quem havia visto uma aparição em filme trash de terror japonês. Game over. E a vida continua, com a certeza de que, aos poucos, tudo volta.

* * *

A exposição foi um sucesso. E a imagem de Klaus, diante da família e convidados estarrecido, foi diferente do que concluiu a imprensa, que interpretou o que fez no cabelo e nas sobrancelhas como estratégia de marketing bem-sucedida, na noite que o elevou a um ícone de transgressão pop daquela geração.

Sim, aquela noite ficaria marcada para sempre e, enquanto recebia os cumprimentos, sentiu saudade de Alícia e sua avalanche de sentimentos. “Amanhã ligarei para ela, sem falta”. E também da irmã, que insistia em dizer que seus quadros abstratos não diziam nada e que se recusava a se juntar àqueles que faziam cara de “paisagem”, quando queriam eram encher a barriga no coquetel de baboseiras em que Klaus estava habituado a participar.

“Hipócritas! Entenda, meu irmão, você é uma farsa que vive em um mundo de aparências, mas eu te amo mesmo assim”, era um dos poucos abraços que recebera dela, e se pegou com um sorriso no rosto ao lembrar a cena. Precisava dormir, estava com dor de cabeça e, no carro, durante o percurso de volta para casa, justificou a esposa que saíra fugido da exposição porque não agüentaria ficar ali mais um minuto. “Foi só um dia ruim, tudo vai ficar bem”. Quando estacionou o carro, percebeu que a polícia o esperava. Problemas batendo em sua porta: era a vida pulsando nas veias.

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