sexta-feira, 25 de junho de 2010

episódio 01 – a minha felicidade pela sua

Na diretoria, eu estava sentado diante de um homem alto, brusco e velho, com bigodes desbotados de tingimento. Minha mãe, uma mulher bonita com um de seus vestidos azuis que ela própria fazia, estava ao meu lado, muito digna, e discordava dele. “Há um engano aqui. Meu filho não faria uma coisa dessas”. O diretor, então, fez um gesto para que eu falasse. “Eu roubei sim, mãe”, falei.

Ela me fuzilou com o olhar, pediu desculpas e devolveu a quantia, que era pouca, ao diretor. Saiu de lá sem me dizer uma palavra, até chegar em casa. Achei que levaria uma surra, mas minha mãe apenas me beliscou e disse, muito seca, para eu ir “pensar” no quarto. Eu não havia furtado o dinheiro da menina, como disse a ela depois, tinha sido meu amigo, Luiz Abílio, que estava com fome.

Ele era gordo e estava impaciente por não comer alguma coisa, então me mostrou o dinheiro, que havia furtado da mochila da Rainbow Brite, que estava em sua frente. Eu não falei nada, mas quando a garota deu por falta, falou para a professora que começou a revistar as carteiras e mochilas. Luiz Abílio, nervoso, estava ameaçando chorar, pois apanharia em sua casa. Disfarçadamente, fiz um sinal para que ele jogasse o dinheiro para mim, que fez isso, mas não tive tempo de jogar no chão. A professora viu a quantia na minha mão e disse: “ladrão!”. Fui parar na diretoria.

Quando minha mãe veio conversar, impaciente, para perguntar o que aconteceu, eu disse a verdade. Ela, então, chorou, me abraçou e contou uma história que tinha a moral de que o mundo era muito mau, e que ninguém deveria sofrer pelos outros o que não era de direito. Sempre a minha felicidade pela dos outros, refleti, anos mais tarde, em uma conversa de botequim. "Você pode ser bom, mas não é para ser bobo dos outros", ela aconselhou enquanto me beijava. “Um dia você vai crescer, e se tornar cafajeste, como todos os homens”, concluiu em voz alta. Antes que eu crescesse, no entanto, mais precisamente naquela tarde, fomos ao cinema ver um filme que nunca esqueci, nem encontrei, chamado “A Dança dos Bonecos”, com fantoches. Foi o primeiro que assisti no cinema.

***


Anos depois.




“Helder, bom dia!
Conforme conversamos, envio uma sugestão de fluxo para o período de obras, que podem ser modificados mas respeitando os 20% que a incorporadora exige. Importante é que neste período não temos juros mas apenas correção monetária. ISLAND BEACH: 98m² finais 5 e 8 andar médio (sujeito a disponibilidade da unidade em questão)
Ato + Sati = R$ 17.560,83
À 30 / 60 / 90 dias do contrato = R$ 6.035,00
33 mensais = R$ 686,00
3 anuais = R$ 9.052,00
Única = R$ 9.052,00
O saldo a financiar . Entrarei em contato posteriormente com o senhor por telefone para saber se gostou do fluxo, e agendar uma visita com a sua família para conhecer de perto este maravilhoso empreendimento da incorporadora MORARE.
Atenciosamente,
Camilo Ribas
Consultor de Negócios e Investimentos Imobiliários Em todo Brasil”
...

***
Comprar empreendimentos imobiliários na planta virou o novo sexo – talvez para substituir os chocolates de fim de noite diante da televisão, a jardinagem, ou a ida aos shoppings de mulheres sexualmente inativas que pensam: “vou comprar umas roupinhas”...
Bem vindo ao maravilhoso mundo de gente grande, com a possibilidade de entrar em uma conta de mais de R$ 94 mil e perder tudo se não conseguir honrar a dívida, a palavra “sati” e mais um apanhado de outras que não imagino o significado...

* * *
...enquanto, do outro lado da rua, alguém atravessava a faixa de pedestres, eu, na mesa do escritório, seria “o homem mais irritado do mundo”, aquele personagem do Nick Hornb, se não estivesse tão cansado naquele dia. Meus ombros doiam, estava com torcicolo e atendi uma ligação de alguém que queria emplacar alguma notinha na coluna em que escrevo.

“Oi, Helder! Tudo bem?”.

“Tudo ótimo! E você?”, caprichei na entonação de “ótimo”, mas na verdade estava preocupado. Se eu ainda fosse um menino, talvez dissesse a verdade a esse praticamente desconhecido que sou cordial e não conheço pessoalmente, mas que só me liga porque quer que eu escreva alguma nota sobre cursos que vão iniciar, com renda para a entidade que preside. Ficaria estranho, mesmo, se ele ligasse para perguntar se está tudo certo comigo. Mas um cartão com votos de feliz ano novo, ou uma ligação para desejar feliz aniversário, se as pessoas realmente estivessem interessadas em conhecer umas as outras, cairia bem.

Enquanto estou no telefone, um desenho de um envelopinho azul começa a piscar em meu telefone celular, para avisar que chegou mensagem. Enquanto digo “sim”, “sim”, “sim”, “claro que publico”, “lógico, assim que puder vou conhecer o trabalho da instituição”, sem intenção nenhuma de cumprir isso, eu também leio. A mensagem é de Daniel – o meu amigo-criança-gigante – que se propôs a relatar a um grupo seleto (eu imagino e, mais que isso, espero), em seu diário de bordo de férias.

“Tô num momento família comendo MC Lanche Feliz, rs”, ele descreve em meu celular, enquanto me despeço e desligo. Sei que peculiaridades assim tornam o dia mais doce, mas estava muito mal-humorado para achar graça. Enquanto trabalho, o Google está aberto, em busca de sintomas que, avaliados pelos médicos, são minimizados. Nele, no entanto, pequenas alergias tomam uma superprojeção imensa e, muitas vezes, enquanto investigo mais e mais, leio a palavra “câncer”. Reconheço que, para os hipocondríacos, o Google é uma arma tão poderosa quanto um veneno.

Aline, a estagiária, passou por mim mancando, e sorriu. Ela não havia morrido, como disse o velho em uma frase conclusiva. Naquele dia, em que caiu de moto e ficou desacordada no asfalto, me aproximei quando vi que não havia sangue. Melina, que estava chorando, eu, pessoas com rostos estarrecidos e ela, sem poder falar. Aline esboçou um sopro de vida ali, no chão. Nunca, em toda a minha vida, fiquei tão feliz em ver alguém chorar. Mas ela estava viva e, enquanto eu pensava nisso, alguns dias mais tarde ela estava do meu lado, sorridente e enigmática.

* * *
Mal se recuperou do acidente, Aline, a estagiária de beleza intimidativa e entonação malandra, voltou a andar de moto e calças justas - mancando. Eu, particularmente, não concordei com ela voltar a dirigir tão cedo, e, agora que conversávamos mais, a aconselhei, pelo menos, a trocar de moto. “Quando alguma coisa acontece com um automóvel, é melhor se desfazer dele”, eu disse, e não sei quem me falou isso. Sei que é superstição pensar que uma coisa quebrada em casa atrai com que outros eletrodomésticos pifem – mas aconteceu com meu DVD portátil e, até que eu não me desfizesse dele, coisas estranhas aconteceram em casa.

* * *
Não muito longe dali, Eduarda tem um dia triste e liga para o marido que, ao lado da chefe, não pode atendê-la como deveria, e é monossilábico. O que poderia ser um alívio para algumas, sobretudo para as adolescentes solteiras que iniciam a sexualidade cedo ou para namoradas desprecavidas que logo cedem, para ela se tornou um martírio.

Teve um dia estressante no trabalho, talvez odeie algumas crianças, e, talvez porque estava chovendo demais, resolveu não voltar para casa a pé. Durante muito tempo, o marido teve receio de trazer uma criança ao mundo, pensando que talvez pudessse repetir os mesmos erros cometidos pelo pai, que o magoou. Depois de certo período de convencimento, já em casa, ela chorava. Em suas mãos, mais um teste de gravidez com o resultado negativo. Concluiu que eles não poderiam ter filhos. O chão se abriu aos seus pés.

Um comentário:

Marcelo Bragança disse...

Como é gostoso ler o seu blog, amigo.
Fico mergulhado nele. Confesso que tô muito curioso em conhecer a estagiária com entonação malandra hahaha
abração!